Conflito Federativo entre Estados e Municípios na Pandemia

Conflito Federativo entre Estados e Municípios na Pandemia

Como é de conhecimento comum, o STF fixou, através de reiteradas decisões proferidas ao longo de 2020, que Estados e Municípios possuem competência concorrente “para a adoção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia”, tais como restrições de comércio e circulação de pessoas (ADPF 672 MC-REF/DF), independentemente da superveniência de ato federal contrário, de acordo com a predominância de interesse.  

Todavia, evidentemente, o federalismo cooperativo reafirmado pela Corte Suprema não autorizou que todos os entes se transformem em verdadeiras repúblicas autônomas. Foi justamente prevendo a possibilidade de eventuais excessos que o colegiado do STF, estabeleceu que: a) quaisquer medidas de restrição devem observar as recomendações técnicas e científicas; b) deve ser resguardada a continuidade de serviços e atividades definidos como essenciais pelos entes federados no exercício de suas competências (ADI 6341 MC-REF).  

Chega-se então ao cenário que ora se apresenta: no conflito entre normas estaduais e municipais que definam a interrupção / continuidade de atividades comerciais, ambas adotando as recomendações dos respectivos órgãos especializados em saúde pública, qual deve prevalecer? A resposta é fornecida pela própria Constituição e pela jurisprudência. A competência legislativa em matéria de saúde pública é concorrente entre União e Estados (art. 24, II), cabendo aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II).  

E conforme recentemente reconheceu o Ministro Presidente do STF, Luiz Fux, no pedido de Suspensão de Liminar SL 1428, “as medidas governamentais adotadas para o enfrentamento da aludida pandemia extrapolam em muito o mero interesse local, referido no inciso I do art. 30 da Constituição”. Nesse sentido, considerando a predominância do interesse regional, nos termos da jurisprudência da Corte Suprema, não parece possível que a norma municipal mais restritiva prevaleça sobre a norma estadual que – diante de critérios técnicos – determine a continuidade de atividades comerciais.  

Dir-se-á que cabe ao município a expedições dos alvarás de funcionamento com respectivo modo e horário de funcionamento daquele ramo de comércio. Não há dúvida. Contudo, ao determinar e disciplinar o fechamento coletivo e difuso, estará, na verdade, interrompendo a atividade econômica de todo um setor produtivo com os consectários inerentes, como a sempre fundamental relação de emprego. Neste caso, face as consequências e abrangência do ato, deve prevalecer a decisão do estado, qualquer que seja.  

Ainda que possua competência concorrente, o interesse intermunicipal afasta a possibilidade de as disposições municipais contrariarem as estaduais, podendo apenas suplementá-las, na forma do já mencionado art. 30. Deve-se levar em conta ainda que cerca 45% da população brasileira vive em regiões metropolitanas, constituídas por vários municípios próximos ou contíguos. Logo, parece ser evidente que as Secretarias Estaduais de Saúde possuem capacidade mais adequada para orientar o chefe do Poder Executivo quanto a necessidade de medidas mais restritiva à luz do cenário epidemiológico, e, especialmente, da própria capacidade de atendimento da rede médica imediatamente disponível em determinada região.  

Neste mesmo sentido, agora sobre o prisma econômico, não se pode ignorar que a manutenção das atividades comerciais – tanto quanto possível – é imprescindível. Em primeiro plano, isto permite a conservação do fluxo de receitas primárias para os Estados, através da arrecadação de ICMS, viabilizando – em última análise – o próprio funcionamento da estrutura do sistema de saúde pública.  

Não é razoável que um ente decida sozinho quando essa decisão atinge fortemente a arrecadação do outro governo, inviabilizando a sua própria manutenção, políticas públicas, folha de pagamento, compromissos financeiros etc. Mas ainda mais importante é garantir a sobrevivência de milhares de empresas e assegurar a preservação de milhões de postos de trabalho. 

 Deve-se superar a falsa dicotomia: não há vida saudável com a economia destruída, e não há economia forte sem uma população saudável. Estudos revelaram que o desemprego aumenta em 83% o risco de doenças associadas ao estresse, como AVC, diabetes e hipertensão, e em 63% o risco de morte. Em conclusão, independente do critério que conduza a análise – jurídico, administrativo ou econômico – é inegável a necessidade de prevalência da norma estadual que autoriza o prosseguimento das atividades comerciais, com amparo na orientação de especialistas em saúde. 

 *Marcelo Buhatem é desembargador do Tribunal de justiça do Rio de Janeiro e presidente        da Associação Nacional de Desembargadores (ANDES) 

 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Tribuna da Imprensa Digital e é de total responsabilidade de seus idealizadores. 

Por Des. Marcelo Buhatem em 12/04/2021

Comentários

  • Ganhamos todos quando assuntos de tamanha relevância é tratado a luz da lei e de uma clara consciência de atendimento às reais necessidades da população. Ganharíamos mais ainda se este momento tão único e difícil da humanidade fosse utilizado para auferir grandes aprendizados, propiciando correções importantes nas leis, nas ações das pessoas e no cotidiano dos cidadãos!
    Barbosa Júnior
    13/04/2021
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