Preito aos cúmplices virtuais

Escrevi assim como tributo aos amigos especiais que sobrevivem vagando pelas redes a procura daquele pote de ouro que surge quando a Internet toca o chão.

Preito aos cúmplices virtuais

Por Walter Felix Cardoso Junior - wfelixcjr@gmail.com

Ficou complicado distinguir ficção de realidade, e o espaço que a mentira vem conquistando nas redes sociais já é maior do que o da própria verdade no coração de muitas pessoas. Não é justo, mas é o que há. Hoje, por exemplo, quando se expõe de peito aberto uma crença que possa ser tida como controvertida, corre-se o risco de sofrer a malhação virtual. Mesmo simples áudios mais descontraídos podem ser mal interpretados, e serão. Dependendo do tema e da plateia, é arriscado empenhar a palavra em discussões livres. Tem os que acreditam no que teclamos e tem os que decididamente não. Esses, dependendo do seu caráter, podem nos cancelar.

Eu prefiro teclar a falar, pois os meus dedos são mais rápidos do que a língua. Eu gosto das interações assíncronas porque podemos ler e reler as mensagens dando um tempo antes de respondê-las. Se replicamos imediatamente, podemos ser traídos por sentimentos inadequados para o momento. A habilidade humana relacionamento se potencializa no computador. Provamos isso todos os dias com um grupo de amigos virtuais, pessoas especiais com quem teclamos sobre atualidades, personalidades, descobertas, absurdos, aspirações, pressentimentos...

Somos vovozinhos com uma permissividade consolidada, duas dúzias de ovelhas sem pastor, algumas morando na Europa, outras nas Américas, e a maioria vivendo aqui mesmo nos grotões brasileiros. Nos esforçamos para que o nosso raciocínio nunca fique à frente dos sentimentos. Consultamos o Google sem a menor cerimônia e com rapidez. Tudo tem que estar às claras. Segredos geram desconfianças. As únicas coisas que nós realmente não gostamos de externar são aquelas que podem levar os outros a duvidarem da nossa sanidade mental.

Às vezes, ficamos em dúvida se compensa ou não investigar assuntos curiosos quando o valor das descobertas pode ser menor do que o custo da ignorância. Verdadeiramente, isso pouco nos importa, e escrevemos sem formalidades, evitando preâmbulos, nunca abrindo mão da correção e da coerência. Alguns conseguem até fazê-lo com arte, como se estivessem pintando uma obra impressionista. Juntamos saberes, descartamos crenças que não nos servem mais e sempre ouvimos os apelos da própria consciência. Afinal, ninguém precisa concordar invariavelmente com a opinião dos melhores amigos. O esclarecimento é uma conquista íntima, o tesouro de cada um. 

Não lutamos contra os fatos e somos sempre o que teclamos, tornando tangível aquilo que transborda dos nossos corações. O senso comum nos permite ressignificar desgraças, e brincamos com as palavras nos divertindo sem perder o sentido. A subjetividade encanta a todos nós e os diálogos valem mais do que mil mensagens descompromissadas e de matar o tempo.

Segundo Milan Kundera, os amigos são testemunhas do passado de cada um, verdadeiro espelho retrovisor. Através deles podemos nos ver criticamente, e com confiança. Milan explica que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, um recurso de não ficar desarmado diante dos inimigos e das adversidades. O amigo sincero é aquele que já chega na “voadora”.

Amigos recentes custam um pouco a perceber a relação de cumplicidade, e podem não valorizar o ferramental que está sendo construído. São sementes de amizade que ainda não foram testadas pelo tempo. Nunca se sabe se enfrentarão com destreza as tempestades ou se serão varridos numa chuva de verão ou numa disputada eleição.

Nossos colóquios têm o barulhinho dos sinos dos ventos. Ora erramos, ora acertamos, mas sempre é possível pedir um tempo pra repensar nossas colocações. E quando somos chamados a opinar, recebemos isso como demonstração de confiança e de respeito, e que deve ser retribuída com bastante consideração.

Não vivemos numa época de flores e tudo que aparece em nossas telas precisa ser virado do avesso para que possa se tornar útil. Postagens muito insanas são atiradas ao ar o tempo todo, mas a gente sempre dá um jeitinho de aproveitar alguma coisa, no mínimo pra condenar aquilo que não pode ser feito nem pensado, muito menos disseminado.

Somos como peças de um mosaico, um quebra-cabeça cuja imagem final temos apenas uma vaga ideia. É um jogo peculiar - as peças vão mudando de forma com o passar do tempo, e podem não mais se encaixarem umas nas outras. Sendo elas mutáveis, não é possível cravar qual será a imagem terminada. As peças têm o poder de se transformar, sendo necessário ajudá-las na sua evolução.

A completude do mosaico premia os participantes com o entendimento do verdadeiro significado do jogo - a razão da nossa vida. Então, voltamos para a grande caixa, onde o nosso Criador nos aguarda ansiosamente. E assim vamos nos completando, aconteça o que acontecer, nos olhando nos olhos e nos respeitando sempre. Contudo, por favor, não me teclem em maiúsculas porque eu imagino que estão gritando comigo.

Walter Felix Cardoso Junior

Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina; graduado na Academia Militar das Agulhas Negras, ex-Comandante do 63 BI; Egresso do Centro Hemisférico de Estudos de Defesa, Washington/USA; diplomado em Gestão de Recursos de Defesa pela Escola Superior de Guerra; ex-Diretor do Departamento de Defesa e Segurança da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; e ex-Secretário de Planejamento Estratégico da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Publiquei três obras de Inteligência Competitiva, uma delas na Argentina.

 

Por 'Reminiscências' em 12/02/2023
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