Informações: o novo território invisível

* Jorge Tardin – jorge@tardin.com.br

Informações: o novo território invisível

Vivemos um tempo em que as grandes conquistas humanas não ocorrem mais sobre terras distantes, nem em mares inexplorados. A nova fronteira da humanidade é silenciosa, invisível e sutil: as informações.

Elas fluem de nossos hábitos mais cotidianos — o gesto de acessar um aplicativo, a busca apressada no navegador, a aceitação automática de termos de uso incompreensíveis — e são imediatamente capturadas, processadas, monetizadas. Sem que percebamos, entregamos pedaços da nossa autonomia a sistemas que se alimentam, incessantemente, de nossos rastros digitais.

Durante séculos, o Direito privado organizou-se para proteger bens tangíveis: a propriedade imóvel, os contratos escritos, a herança familiar. Hoje, no entanto, o ativo mais precioso que possuímos não pode ser tocado nem visualizado diretamente. Nosso novo patrimônio — e, paradoxalmente, nossa nova vulnerabilidade — são os dados pessoais.

E nesse ambiente informacional saturado, não basta mais falar em privacidade como direito isolado. O que está em jogo é a própria estrutura da liberdade individual.

A promessa original da era digital era de emancipação: mais acesso, mais escolhas, mais voz. Contudo, o que se observa, de modo cada vez mais inequívoco, é a consolidação de um sistema de vigilância preditiva, tal como brilhantemente descrito por Shoshana Zuboff. Um sistema que não apenas registra comportamentos, mas os antecipa e molda, convertendo previsibilidade em capital.

Enquanto você lê esta crônica:
 – 3,2 milhões de dados pessoais foram coletados;
 – 17 algoritmos previram seu próximo movimento;
 – A palavra “liberdade” foi pesquisada 84 mil vezes no Google.

Neste exato instante, há um perfil seu — atualizado em tempo real — indicando o que provavelmente você desejará comprar, pensar ou sentir nas próximas horas.

O paradoxo é brutal: quanto mais interagimos com o ambiente digital, mais nos afastamos da experiência genuína de escolha. O que chamamos de "livre-arbítrio" é, em grande parte, um roteiro invisível, escrito a partir dos nossos próprios impulsos manipulados.

A urgência de repensar a autonomia privada

O Direito precisa urgentemente atualizar sua compreensão sobre autonomia.
 Não se trata mais de garantir liberdade formal para contratar ou circular informações. Trata-se de assegurar que essa liberdade seja materialmente possível, ou seja, que o indivíduo tenha condições reais de compreender, avaliar e resistir às arquiteturas invisíveis que hoje moldam suas decisões.

Stefano Rodotà, Luigi Ferrajoli, Gustavo Tepedino e tantos outros pensadores já advertiam: consentimento sem verdadeira compreensão é fraude. Não basta que o sujeito tenha "aceitado" um contrato digital. É preciso que ele tenha, de fato, autonomia para deliberar.

Hoje, o que se vê são contratos de adesão algorítmica: longos, técnicos, opacos. Uma falsa escolha embalada em linguagem de liberdade.

Sem transparência algorítmica, sem possibilidade real de recusa, sem espaços livres de vigilância, o exercício da liberdade torna-se simulacro.

Privacidade como dignidade — e não como mercadoria

Proteger os dados pessoais, neste novo mundo, é mais do que um imperativo técnico de compliance.
 É um imperativo civilizatório.

A privacidade não é luxo, nem obstáculo à inovação. É a linguagem contemporânea da dignidade humana. Ela garante ao indivíduo o direito de existir sem estar permanentemente exposto ao olhar econômico e político do outro.

Negligenciar a proteção das informações pessoais é consentir com a transformação do ser humano em mero insumo de capitalização comportamental.

É necessário, pois, restaurar a privacidade como território de resistência. Um espaço onde o sujeito possa deliberar sem ser previamente moldado; escolher sem ser monitorado; existir sem ser mensurado.

O futuro próximo: ou reconstruímos o Direito ou viveremos colonizados

Em breve, os conflitos jurídicos mais intensos não girarão apenas em torno de propriedade física ou litígios de consumo tradicionais. Eles envolverão disputas sobre perfis digitais, manipulação preditiva de escolhas e controle sobre os próprios dados.

Será preciso inovar em instrumentos jurídicos: cláusulas de transparência algorítmica, proteção reforçada para decisões automatizadas, garantias de opt-out efetivo em sistemas de captação de dados.

Mas, mais profundamente, será preciso reconstruir o próprio conceito de autonomia privada, adaptando-o a um ambiente onde as condições mínimas de liberdade estão sendo sistematicamente erodidas.

O que está em jogo não é apenas o futuro do Direito. É o futuro da liberdade humana.

Se não reconhecermos as informações como território político, se não reconstruirmos a proteção da privacidade como pilar da convivência democrática, corremos o risco de sermos — todos nós — meros objetos nas mãos invisíveis de arquitetos de comportamento.

A pergunta que fica, com urgência renovada, é a seguinte:

Você ainda controla suas informações?
 Ou já foi colonizado sem perceber?

* Jorge Tardin – jorge@tardin.com.br é professor de Direito | Estrategista Jurídico da Coalizão Veredicto do Capital | Tesoureiro da OAB-Búzios

Por Ultima Hora em 30/04/2025
Publicidade
Aguarde..