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Iniciativa cidadã alerta motoristas de aplicativo e até policiais sobre territórios dominados pelo crime organizado na capital fluminense
Guia virtual nasceu após tragédia e hoje mapeia disputas territoriais entre facções. Em meio à crescente violência urbana no Rio de Janeiro, uma ferramenta inusitada tem se tornado essencial para quem precisa circular pela cidade. Um mapa colaborativo, criado inicialmente por um morador após a morte de um amigo entregador, transformou-se em instrumento de sobrevivência para motoristas de aplicativo, taxistas e até mesmo policiais que precisam navegar pelos complexos territórios dominados por facções criminosas.
O projeto, hospedado em uma plataforma semelhante ao Google Maps, registrou recentemente uma mudança significativa: a substituição da sigla "M" (milícia) por "TCP" (Terceiro Comando Puro) na região do Catiri, em Bangu, na Zona Oeste. A alteração simboliza a venda de parte do território pela milícia local ao grupo rival, informação confirmada tanto por moradores quanto por policiais, segundo o criador do mapa.
"A cidade está em guerra há décadas. A gente só tenta diminuir as tragédias que acontecem por falta de informação", declarou o criador da plataforma à reportagem, sob condição de anonimato. Ele revela que a iniciativa nasceu em 2023, após um amigo entregador ser morto ao entrar inadvertidamente em área dominada pelo tráfico no Complexo de Israel. O corpo da vítima jamais foi encontrado, tragédia que motivou a criação do guia virtual.
O mapa, que inicialmente era gratuito, agora custa R$ 10 para acesso. O criador justifica a cobrança como forma de limitar o uso indevido por jornalistas e influenciadores que, segundo ele, se apropriavam do conteúdo para gerar engajamento sem os devidos créditos. A plataforma é alimentada por diversas fontes, desde relatos de moradores até imagens de criminosos celebrando invasões territoriais, embora o anonimato impeça identificar a origem precisa das informações.
Ferramenta informal ganha reconhecimento entre trabalhadores e autoridades
Mesmo sem reconhecimento oficial, a ferramenta conquistou usuários entre profissionais da mobilidade urbana. Um taxista e um mototaxista relataram utilizar o guia há aproximadamente dois meses para evitar áreas onde a circulação externa é proibida por facções criminosas, reduzindo riscos em seu trabalho diário.
O que chama atenção é que até mesmo agentes de segurança pública têm recorrido à plataforma. Policiais civis e militares confirmaram à imprensa o uso informal do material, embora ressaltem que ele pode conter imprecisões. O autor afirma manter o mapa atualizado através de relatos e imagens de usuários, além de acompanhar perfis jornalísticos especializados em segurança e páginas ligadas ao noticiário criminal.
"Conheço muitas comunidades pessoalmente. Esse conhecimento ajuda a manter o mapa o mais preciso possível", explicou o criador, que utiliza o Telegram – aplicativo com mensagens que se autodestroem – para suas comunicações, evidenciando os riscos associados à iniciativa.
Reorganização territorial do crime organizado no Rio
A relevância da ferramenta cresce em um contexto de constante reorganização territorial do crime organizado no estado. Dados divulgados em abril de 2024 pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF) e pelo Instituto Fogo Cruzado revelam que, em 2023, o Comando Vermelho foi a única facção a expandir seu território na Região Metropolitana do Rio, crescendo 8,4% e passando a controlar 51,9% das áreas ocupadas por grupos criminosos.
As milícias, por outro lado, perderam espaço, caindo para 38,9% de domínio, com retração de 19,3%. O Comando Vermelho chegou a controlar 242 km², seu maior território desde o início do mapeamento em 2008, superando os 181 km² das milícias – uma inversão de tendência observada desde 2020.
Em resposta à ofensiva das facções, a Polícia Civil lançou em março a Operação Contenção, especialmente voltada para frear o avanço do Comando Vermelho na Zona Oeste. Em uma das etapas, realizada em 10 de abril, a corporação solicitou o bloqueio de aproximadamente R$ 6 bilhões ligados ao Comando Vermelho e ao Primeiro Comando da Capital (PCC). "Foi a maior investigação da história", afirmou o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi.
Consequências trágicas da disputa territorial
A atuação das facções e as trocas de domínio têm consequências diretas e trágicas para a população. Somente em 2024, pelo menos 16 pessoas foram baleadas ao entrarem por engano em comunidades dominadas, segundo o Instituto Fogo Cruzado – o maior número desde 2016.
Um dos casos mais recentes envolveu um idoso de 80 anos, de São José dos Campos (SP), que entrou inadvertidamente no Complexo de Israel, na Zona Norte, e teve o carro atingido por tiros de fuzil. Ele foi ferido de raspão, agredido e teve a roupa rasgada por supostos traficantes.
A expansão do Complexo de Israel, sob domínio de Álvaro Malaquias, conhecido como "Peixão" – foragido e investigado por terrorismo –, é monitorada de perto pela Polícia Civil e pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (CDDHC/Alerj). O número de desaparecimentos na região preocupa familiares e moradores, como no caso do entregador que motivou a criação do mapa.
Para seu criador, o guia representa mais que uma simples plataforma – é um instrumento de resistência em meio à negligência do poder público: "Nosso foco nunca foi monetizar, mas proteger trabalhadores."
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